Quando Terêncio completou quarenta anos, seu compadre Luís Fernando falou alto, em pleno churrasco de comemoração do natalício, diante da esposa, filhos, amigos, da parentada toda:
- Ê, Terêncio, é chegada a hora de te inscreveres num programa de inclusão digital!
Acostumado à lida dos pastos, ao trato de bezerros e de touros, homem que aonde chegava despertava a atenção por recender a estrume de vaca, Terêncio não entendeu. Teve um princípio de vergonha, mas venceu-a e perguntou:
- Mas que diacho é isso, tchê?
Luís Fernando não se fez de rogado e disparou, sem medir o vexame a que submetia o compadre:
- Inclusão digital, oras! Terás que ir ao médico, que introduzirá um dígito no miolo de ti!
Foi uma gargalhada geral. Enrubescido, Terêncio dessa vez engoliu a seco e deliberou não escancarar sua ignorância. Sua esposa Elis, entendida e constrangida, adiantou-se em concordar com o compadre e se comprometeu a agendar consulta com um especialista, que o próprio amigo indicara.
Na data aprazada, Terêncio compareceu ao consultório do Doutor Avamileno. Chegou até ali sem saber ao certo de que se tratava a tal inclusão digital. O médico, um bonachão duns sessenta anos, cabelos inteiramente grisalhos, que clinicava nos pampas desde o início da carreira, apareceu à porta da sala. Exibindo um sorriso maroto, fez com o indicador direito o peculiar movimento para chamar o paciente.
Terêncio entrou sozinho. Olhou suplicante para Elis, mas a mulher achou que seria constrangedor acompanhá-lo.
- Te abanque, índio velho! – disse o médico paulista, imitando o sotaque e o linguajar próprios do lugar.
Um tanto ressabiado, o paciente sentou-se diante da pequena escrivaninha. O doutor procurou tranqüilizar Terêncio, explicando-lhe que seria apenas um toque e o quanto o exame era importante para prevenção do câncer na próstata. Dito isso de maneira sucinta, ainda incompreensível para o criador de gado, recomendou a ele que fosse para trás do biombo e ali trocasse toda a roupa por um avental azul.
Assim fez o pecuarista. De volta, o médico pediu a ele que, mantendo-se em pé, dobrasse o tronco sobre uma maca, de modo que suas nádegas ficassem em posição que facilitasse o exame. Bundinha arrebitada e atônito, Terêncio imaginou que o médico fosse aplicar-lhe uma injeção, decerto para coleta de sangue. Não viu quando o outro meteu uma luva de borracha na mão direita e a ajeitou especialmente no dedo indicador, que esticou para conferir que estava em ordem. Tudo evidentemente foi feito às costas do paciente.
Quando o médico introduziu o dígito, Terêncio soltou um “uuu!” doloroso, mas sua reação foi abafada pelo toque do celular do doutor. Mantendo o dedo em riste no lugar onde fora introduzido, o especialista atendeu a ligação segurando o aparelho com a outra mão, abrindo-o com a boca e apoiando-o no ombro esquerdo. Era sua filha, que recentemente obtivera licença para dirigir.
- Oi, filha! Tudo bem, meu amor?
Terêncio mordia os lábios e se contorcia, incomodado com o dedo que parecia penetrar-lhe a alma. O médico seguia impassível.
- Sei sim onde fica esse salão de cabeleireiro, filha. Onde é que você está? Hmmm, deixe-me ver. Você está vendo à sua esquerda o prédio da prefeitura, não?
Ao dizer isso, o médico moveu levemente seu indicador para o lado esquerdo. Terêncio suportou, mas não pôde conter uma primeira lágrima.
- Ótimo, ótimo! Então, filha, você vai passar pela frente da prefeitura e virar na primeira esquina à direita.
O dedo do médico seguia as orientações que ele dava à moça, agora em movimentos bruscos. Outras lágrimas escorreram pelo rosto de Terêncio.
- Em seguida, você vai andar por duas quadras e virar à esquerda!
E lá foi o dígito do médico, primeiro num movimento de duplo vaivém, depois girando para a esquerda.
- Isso, isso. Depois, você vira novamente à direita...
E o dedo girou na mesma direção.
- ...dá uma volta na praça...
Nesse momento, o médico desenhou no âmago de Terêncio um círculo, dando com o dedo uma volta de 360 graus.
- ...segue por mais uma quadra...
Fez um entra-e-sai derradeiro.
- ...e pronto! Chegou!
Num momento de profunda ternura, despediu-se da filha dizendo o quanto a amava e pôs-se à disposição para novas informações. Desligou o celular, e só então percebeu que Terêncio, antes tenso, agora estava relaxado e suando a bicas. Com o pescoço torcido e a cabeça voltada para trás, disse ao médico:
- Ah, doutor, dá mais uma voltinha na praça! Só mais uma voltinha, tchê!
Elis jamais entendeu por que o marido passou a fazer visitas quinzenais ao Doutor Avamileno.
sábado, 28 de abril de 2007
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